Gianguido Bonfanti nasce em São Paulo no dia 5 de outubro em uma família italiana, sendo o primogênito de Bianca e Gianfranco Bonfanti. Apesar de viverem no Rio de Janeiro, transferem-se, por dois anos, para a cidade de São Paulo devido ao trabalho de seu pai. Em 1950, nasce sua primeira irmã, Anna Claudia. Em seguida a família retorna ao Rio definitivamente. Em 1957, nasce sua irmã caçula, Renata Bonfanti. De espírito inquieto, sua primeira infância se passa na colônia italiana do Rio de Janeiro.
Em paralelo aos estudos escolares, inicia seu aprendizado como artista, freqüentando o ateliê de Poty Lazzarotto, companheiro de seu pai na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Amigo da família até o fim da vida, Poty torna-se seu mestre. Durante o aprendizado, viajam com freqüência para Curitiba, capital do Paraná (cidade natal de Poty), e para Minas Gerais, onde cidades históricas como Ouro Preto e Mariana se oferecem como um manancial a partir do qual Gianguido e Poty desenham, fazendo surgir casarios e paisagens dessas pequenas cidades barrocas.
Expõe pela primeira vez ao lado de outros artistas, também jovens, na Galeria Santa Rosa, Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, em companhia de um casal amigo de seus pais, conhece a Itália, entrando em contato com o ramo italiano da família.
Ingressa no curso de arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha em escritórios de arquitetura como estagiário. Preservará para sempre sua admiração e desejo contido pela arquitetura. Muitas vezes, de uma forma nostálgica, pensa na Renascença como a possibilidade perdida de unir a pintura à arquitetura.
Por intermédio do Consulado Italiano do Rio de Janeiro obtém sua transferência para a faculdade de arquitetura em Roma. Viaja acompanhado de sua primeira mulher, Leonarda Musumeci, com quem vivia desde o ano anterior. Ao chegar, o desejo de pintar torna-se imperativo e Bonfanti sequer procura a faculdade de arquitetura, dirigindo-se à Academia dei Belle Arti, onde presta exame e, obtendo bons resultados, passa a freqüentar o ateliê de modelo vivo e as aulas de gravura em metal da Academia. Esse passo define uma mudança importante em sua vida, determinando-lhe a carreira. Nesse processo, um encontro marca sua procura: uma exposição de gravuras em metal, dos anos 20 e 30, de Pablo Picasso, em uma pequena galeria de subsolo na praça do Pantheon, em Roma. A pureza das linhas sobre o fundo impecavelmente branco, a capacidade de síntese gráfica, porém, altamente expressiva daquelas gravuras, ficam como um ensinamento jamais esquecido.
Ao retornar ao Brasil, realiza sua primeira exposição individual: “G. Bonfanti”, na Galeria do Centro Cultural Lume, no Rio de Janeiro, com os desenhos produzidos durante a temporada em Roma.
A caligrafia sensível corre por linhas fluentes. Entre interrupções bruscas, vírgulas salpicam de negro um discurso infindável e obsessivo. A pena vive o “frenesi” de ferir o papel. O desenhista já anuncia o gravador, onde o traçado não é só o dos caminhos a percorrer. São passagens por onde a vida calca e arrasta. Por vezes a linha se converte em fios. Narra uma história sem fim. E mantém no ar a mutilação dos seres: oscilantes, flutuantes e perplexas figuras; “marionetes de uma inexorável dependência; “móbiles” de carne de um jogo voraz, tão arcaico e pressentido.
(Flavio L. Motta. Em catálogo da exposição G. Bonfanti no Centro Cultural Lume.
Rio de Janeiro, 23.07.1973).
Um jovem desenhista manipulando a linha com desenvoltura e sensibilidade extraordinárias, dentro de uma conceituação decerto tradicional desse meio expressivo, porém dotado de uma vitalidade e de uma imaginação que realmente fogem o comum, senhor de recursos técnicos e sobretudo de uma força poética que raramente é possível ver em artistas tão moços, eis que desde logo me parece Bonfanti, cuja arte é-me apresentada de chofre, sem que em nem um só momento tivesse eu duvidado ter ante os olhos a obra de uma autêntica e cabal vocação artística.
A crítica que se compraz em atacar a periferia do problema, apontando fontes e lobrigando influências, decerto falará, em relação a Bonfanti, dos velhos mestres em que foi obedecer-se, em Bruegel e Bosh e sabe quem mais: mais importante é, porém, percorrer de ponta a ponta o traçado de uma de suas figuras ora exóticas, ora bizarras, ora trágicas, ora cômicas, acompanhar pacientemente o contorno de uma perna ou de um braço, a surpreender as variações de sensibilidade e de humor tão bem impressas na superfície branca do papel. Poucas vezes, em verdade, tenho visto linha mais sensível e expressiva que a desse novo artista, que é além do mais um poeta fértil de esquisita imaginação, focalizando em cenas extremamente despojadas o absurdo do mundo – um mundo em equilíbrio instável, capaz, de tão precário, de a qualquer momento conturbar-se e desmoronar.
Sim, “os que não amam a pintura em si mesma concedem grande importância ao assunto dos quadros” – e será difícil não ser atingido pela temática do Bonfanti, criador de mitos visuais cheios de interesse inclusive psicológico; é preciso porém ver-se esses desenhos tais como são – espécimes valiosos de uma arte dificílima, com um ritmo próprio, uma textura sui generis, uma composição inusual, tão largos de execução e sobretudo tão puros, que até sugerem música.
(José Roberto Teixeira Leite. Em catálogo da exposição G. Bonfanti, no Centro Cultural Lume.
Rio de Janeiro, 30.08.1973).
Enriquecido pelos dois anos vividos na Itália, Bonfanti retorna ao país num momento de turbulência política e social: a década de 1970 se passa sob as fortes amarras da ditadura militar. Nesse cenário, a produção cultural é, por si só, um foco de resistência. Buscando uma inserção, Bonfanti começa a freqüentar a Escolinha de Arte do Brasil (EAB) para aprofundar seus estudos em gravura, sob a orientação de Marília Rodrigues. A EAB, fundada por Augusto Rodrigues (artista plástico, também amigo de seu pai), é um importante núcleo de resistência, formando professores e artistas. Augusto Rodrigues introduz o ensino da arte-educação no país em consonância com as diretrizes teóricas de Herbert Read na Inglaterra.
Realiza mostra individual: “Desenhos de G. Bonfanti”, no Museu de Arte Contemporânea do Paraná, em Curitiba.
Nesse período, Bonfanti tem um importante reconhecimento através de quatro premiações: 1o lugar na categoria Desenho da 3ª Mostra de Artes Visuais na Cidade de Niterói (RJ); prêmio na categoria Desenho no 31º Salão Paranaense, e o prêmio de Isenção de Júri no 23º Salão de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Recebe no ano seguinte, o prêmio na categoria Desenho no 2o Concurso Nacional de Artes Plásticas.
Em 1975, sob a influência de Poty, que tem uma atividade intensa como ilustrador, principalmente de livros como os romances de Guimarães Rosa, Bonfanti resolve enveredar nessa experiência durante um período de sua vida, o qual se estende até 1978.
Gianguido parece querer comprometer-nos na exploração de um território tenebroso, através de percurso pedagogicamente construído. E o que torna mais diabólica a proposta é a submissão do horror de suas mutilações a uma imensa candura. Essa atmosfera é assegurada pelos personagens infantis e pelos jogos (as bolas de gude, o balanço), envolvendo até alguns meio-homens monstruosos. O aterrorizante e o suave estão reunidos no interior de um décor vitoriano, austero e delicado.
(Paulo Sérgio Pinheiro. Em catálogo da exposição Desenhos de G. Bonfanti, Museu de Arte Contemporânea do Paraná. São Paulo, outubro de 1974).
Ilustra vários jornais e revistas, entre os quais Pasquim, Ele & Ela, Jornal do Brasil e O Globo.
Em 1976, uma crise pessoal se anuncia, fazendo-se sentir, primeiramente, em sua produção plástica: ao hospedar-se em um sítio de um amigo, encontra na biblioteca um livro sobre doenças tropicais; fica bastante impactado e, ainda no cenário de resistência política brasileira diante da ditadura militar, decide desenvolver um projeto de denúncia social através da reprodução de doenças comuns no Brasil nas populações menos abastadas. Bonfanti passa a freqüentar o Instituto de Doenças Tropicais do Rio de Janeiro com intuito de produzir gravuras que reproduzam, na íntegra, algumas dessas doenças.
Em seguida, o artista se dirige ao Setor de Anatomia do Instituto Hahnemanniano para fotografar cadáveres, a partir dos quais pretende produzir fotogravuras somadas ao recurso da intervenção gráfica. Ao longo desse percurso, que teve a duração de quase dois anos, Gianguido se separa da primeira mulher, enfrentando uma crise emocional que inviabiliza sua disponibilidade interna para o trabalho plástico. Com isso, seu projeto fica inacabado.
Em 1978, volta-se para trabalhos coletivos: projeta um teatro em uma pequena sala do Centro Cultural Cândido Mendes, na qual se dá a montagem da peça As gralhas (baseada em um texto de Kafka), cujo cenário é também de sua autoria [1]. Nesse período, em função da crise pessoal, o artista inicia um processo psicanalítico com Mário Romaguera, que se desenvolve por quatro anos, até meados de 1982.
Ainda em 1978, começa a dar aulas de gravura e fotogravura na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). Nesse período, sob a direção de Rubens Gerchman (1975-1980), o Parque Lage assume seu lugar de ponta na formação de artistas e produções culturais, tornanando-se a mais importante escola de artes da América Latina nos anos 70. É freqüentada por um número expressivo de artistas e intelectuais, tornando-se mais um lugar de resistência ao regime militar.
A ambientação cenográfica de Gianguido Bonfanti, que selecionou uma mínima quantidade de objetos ao mesmo tempo funcionalmente necessários ao desenrolar da ação, mas também, já pela sua extrema limitação quantitativa, dotados de um potencial altamente concentrado de insinuações sobre o papel simbólico que cada um desses objetos desempenha no choque das forças em jogo. Neste contexto vale ressaltar a inventividade de soluções, como a fantástica cadeira que um dos personagens carrega nas costas, ou a porta que, quando deslocada da sua posição vertical para a horizontal, transforma-se numa cama. Mas mesmos objetos muito simples, como um relógio ou um gorro enfiado na cabeça, adquirem, com a ajuda de uma adequada manipulação pelos intérpretes, um significado bem mais amplo do que a sua destinação meramente utilitária permitiria supor.
(Yan Michalski. Em Jornal do Brasil, Caderno B. Rio de Janeiro, 30.12.1978).
O ano de 1979 é um marco na vida de Bonfanti; com vigor retorna ao trabalho de gravura e desenho, cuja temática é perpassada pela experiência pessoal de análise. O afloramento da fantasmagoria familiar é incontinente e resulta em uma série de oito gravuras acrescida de um grande número de desenhos a bico de pena.
Insinua-se aqui a passagem do desenho para a pintura: o fundo, nos desenhos anteriores, totalmente em branco está agora ocupado.
Participa da 2ª Mostra Anual de Gravura da Cidade de Curitiba, conquistando o Prêmio de Aquisição.
Esse ano marca também o “namoro” de Bonfanti com a cor, até então excluída de sua produção. Inicia alguns trabalhos em pastel seco como mais um passo para a pintura. A abstração que encontramos mais adiante já se anuncia em partes da composição. O bastão de pastel seco é um instrumento a meio caminho do desenho e da pintura, seu contato com a mão é equivalente ao do carvão ou do lápis, e o resultado pode ser o da plena pintura, como em Degas.
A empreitada de estudos e investimento no campo da pintura se acirra e estender-se-á por toda uma década. Faz pesquisas em ateliê de restauração com Marilka Mendes e Edson Motta Filho. Também se dedica ao estudo em livros especializados, buscando as melhores soluções para os problemas técnicos da pintura e sua melhor conservação. A preocupação com a permanência e a durabilidade da obra é uma constante no artista.
Leciona gravura de 1980 até 1982 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em 1980 tem como aluna sua futura mulher, Marisa Schargel Maia.
Esses dois anos são anos de grandes mudanças pessoais: casa-se com Marisa em 9 de maio de 1981, apesar da resistência de ambas as famílias pela súbita decisão. Constitui nova residência, continuando, no entanto, a morar em Santa Teresa, bairro antigo da cidade, caro aos intelectuais e artistas.
Ainda num diálogo com a arquitetura, elabora o projeto e acompanha a construção do ateliê de gravura em metal da Fundação José Augusto, em Natal (RN), proferindo o curso inaugural da instituição. Nesse mesmo período, a Biblioteca Câmara Cascudo, na mesma cidade, organiza sua mostra individual: “GianguidoBonfanti – desenhos e gravuras”.
Agora, tomado pela cor, Bonfanti conquista o prêmio na categoria Desenho do 5º Salão Carioca de Arte do Rio de Janeiro com seus pastéis secos.
Dá-se inicio a um longo período de reclusão no ateliê que se estenderá até 1985, no qual Bonfanti se entrega à pintura a óleo, estabelecendo um diálogo com a história da pintura que atravessa o retrato, assunto recorrente em todas as épocas, a referência fundamental de Francis Bacon, Edward Munch e, mais adiante, a transvanguarda de Sandro Chia e Mimmo Paladino.
Nasce Pérola, primeira filha, no dia 30 de dezembro de 1983.
Afetado pela experiência da gestação de sua mulher, a pintura muda de rumo: na busca do lúdico, do infantil no Homem, aproxima-se de Miró.
Interrompe a atividade didática na Escola de Artes Visuais durante esse período.
No decorrer desses dois anos, leciona desenho de modelo vivo e pintura no Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro.
Após o tempo de reclusão, em 1985, o marchand Franco Terranova organiza uma grande mostra de suas telas a óleo e guaches na galeria Espaço Petite Galerie: “Gianguido Bonfanti – pinturas e guaches 1983-1985”.
Nessa ocasião, o maior colecionador de arte contemporânea do Brasil, Gilberto Chateaubriand, ao visitar a exposição adquire três telas de grandes formatos, dando início a uma coleção que hoje conta com mais de quarenta obras.
No dia 18 dezembro de 1985, Gianfranco Bonfanti, seu pai, falece ao completar 61 anos de idade.
É certo, também, que alguns destes signos-símbolos guardam ainda a memória de uma violência anterior (visível nos seus desenhos em preto e branco de uns dez anos atrás, com objetos cortantes e afiados) e é por isso que sua pintura não é nem amena nem decorativa. O artista continua criando “imagens incômodas” mas, sem dúvida, o melhor de seu trabalho atual é esse novo lirismo que canta a vida e o amor.
(Frederico Morais. “Bonfanti na Petite Galerie: Cores líricas sobre ‘imagens incômodas’”. O Globo. Rio de Janeiro, 14.06.1985).
Após a morte de seu pai, Bonfanti, além da atividade didática e da pintura, dedica-se à reorganização familiar, tanto emocional quanto financeira: sua mãe Bianca e sua irmã Anna Claudia necessitam de apoio.
Sob a direção de Frederico Morais, novo diretor da Escola de Artes Visuais, Bonfanti ocupa-se do projeto de reformulação de sua estrutura pedagógica, assumindo o curso de modelo vivo. Deste momento em diante, não mais interromperá a atividade docente na EAV. Durante esses dois anos, também leciona desenho e pintura na Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro.
Em paralelo à atividade docente, a experiência na pintura em direção à pura abstração continua, Bonfanti é levado a seu fundador, Kandinsky; estuda a obra do mestre nos campos teórico e pictórico, o que lhe permitirá entender melhor a linguagem das formas e das cores para além do assunto. Nesse processo, busca desenvolver um olhar capaz de ler uma obra plástica por suas pulsações. Essa pesquisa formal chega à síntese em 1987, agora sob a influência de Frank Stella.
Depois de um período de cinco anos de visitas ao ateliê, o marchand Thomas Cohn (1988) organiza em sua galeria, Thomas Cohn Arte Contemporânea, uma mostra individual de suas pinturas geométricas: “Bonfanti”.
É de Thomas Cohn a frase: “Quando não se pensava que algo ainda pudesse ser feito na geometria, surgem as suas telas!” A crítica especializada caracteriza essa nova fase como um momento radical de mudança que contém, no entanto, núcleos do trabalho anterior. Aquilo que nem o artista tem consciência é que outra mudança está por vir: ao retornar ao trabalho de ateliê após a mostra, a pintura formal com cores chapadas e opacas passa a lhe trazer sensações de aprisionamento. Bonfanti deixa a geometria e busca as velaturas, as superposições e a organicidade.
Em 1989, visita Nova York pela primeira vez, recebendo o impacto da efervescente metrópole com suas 400 galerias de arte e museus.
Dedica-se, também, ao estudo e ao debate sobre a estética e a problemática da arte na contemporaneidade: organiza e coordena o Fórum de Idéias na Escola de Artes Visuais.
A pesquisa do período anterior desemboca na exposição, organizada por Paulo Figueiredo, na Paulo Figueiredo Galeria de Arte, em São Paulo: “Bonfanti” . Já nesse momento, Daniel Piza acompanha sua produção, escrevendo uma crítica para o jornal Estado de S. Paulo: “Pintura evolui da geometria ao erotismo”.
Inicia-se novo e longo período de reclusão ao ateliê. A figuração retorna lentamente, acompanhada de velaturas de cores complementares, filtros de violetas de cobalto sobrepondo-se a fundos de laranja de cádmio.
A violência do gesto despeja empastos de óleo sobre a tela. É sua fase vermelha, que se estende até início de 1999.
De passo ao trabalho de ateliê, Bonfanti dá continuidade a seus estudos de história da arte e de estética. Em uma certa medida, a experiência abstrata o enriquece e, ao mesmo tempo, lhe dá segurança para retornar ao figurativo, permitindo-lhe, agora, distanciar-se, ainda mais, do assunto do quadro para olhar a pintura por ela mesma. Além do mais, o panorama conturbado da arte contemporânea o obriga a refletir: em 26 de maio de 1996 publica no caderno Idéias/Livros do Jornal do Brasil o artigo “A guerra da pintura”, denunciando as verdadeiras razões que levaram à afirmação, tão corriqueira, que a pintura não mais sustenta a potência para o diálogo com a atualidade.
No mesmo ano, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro organiza uma grande individual: “Bonfanti”. Essa mostra conta com 15 óleos em grandes formatos da série vermelha e um núcleo de desenhos e gravuras da década de 1970 como matriz das novas pinturas. A crítica recebe esta exposição com entusiasmo, um número considerável de artigos é publicado. Destaque especial para Wilson Coutinho, que acompanha seu trabalho desde 1981. O crítico escreve diversas matérias, entre elas a do jornal O Globo, em 4 de maio de 1996: “Dos desenhos às pinturas de alta qualidade”.
Nesse mesmo ano, Bonfanti tem outro encontro importante: em uma viagem a Nova York, vasculhando a livraria do Museum of Modern Art, se depara com o livro do artista inglês Frank Auerbach.
As dúvidas foram dominadas, abrindo caminho para uma pintura de alta qualidade, mas uma outra contingência moral deve ter lhe ajudado. A chamada escola inglesa de pintura formada por Francis Bacon, Lucien Freud, Frank Auerbach começou a ser levada a sério pela crítica. Bacon, é certo, já era, mas Freud e sua pintura realista e de densidade psicológica, além de Auerbach, com o vigor de sua matéria, começaram a deixar o isolamento de anos. O tempo corrige suas deficiências. O espírito suave e californiano de David Hokney parecia – se não é – um arcaísmo. Nos Estados Unidos, ninguém estava pintando ou ao menos de tal se pudesse reparar, imaginando que Julian Schabel estivesse dedicado à pintura ou Jean Michael Basquiat idem.
(...) o que faz parte do universo expressivo de Gianguido é algo declaradamente triste. Se ele não tem nenhuma convicção para realismo psicológico, as suas cenas parecem afixadas numa desumanidade da carne, é que ele é um pintor do antinatural por instinto, o que não ocorre nem com Freud nem com Auerbach. Um dos fatos é que sua pintura, quando está bem-sucedida, é um envolvimento completo de ponta a ponta do quadro, não permitindo certas distâncias por onde se introduziria um matiz psicológico. São cenas, por vezes, até muito agitadas, mas elas parecem exigir de seus atores uma certa paralisia plástica: a de que qualquer intervenção psicológica atenuaria o que ele quer significar como pintor, isto é, uma superfície relevante, cheia de eventos visuais significativos por todos os lados. Talvez suas cenas são fortes devido a isto e tem equivalência em suas águas-fortes.
Gianguido não é ainda um pintor que despreze a tradição, e não falo só da tradição modernista. Há timbres de Delacroix, certos efeitos rubensianos, pintores que souberam dramatizar suas pinturas. Há toques até elegantes e uma paleta que ressoa uma harmonia seletiva nas cores, preponderando o vermelho, usado, creio, como o veículo mais poético de suas intenções. É certo, ao menos na minha opinião, que a exposição de Gianguido no MAM-Rio foi um processo de tornar a cena planando e entranhada numa atmosfera de cor e de gestos. As primeiras pinturas ainda dão destaque a falos imensos, que lembra a sexualidade debochada de alguns da chamada Transvanguarda. Mas, de imediato, o pintor recupera a sua experimentação fundamental e segue os caminhos do seu instinto.
(Wilson Coutinho. Em revista Rio Artes 23, 1996).
Eis finalmente, um artista fora de moda. Eis um pintor que não se envergonha de ser plenamente pintor, que não tenta disfarçar aquilo que é próprio da linguagem da pintura, com cacoetes e macetes modernizadores, apenas para estar a la page com os modismos internacionais, tão do agrado da crítica. Pintura viril, forte, exuberante, demonstra estar seu autor na plenitude do ofício e de seus recursos técnicos. Pintura que tematiza as obsessões do artista – os binômios prazer e solidão, confinamento e memória, arquétipos e projeções anímicas –, as quais, entretanto, são transferidas do terreno biográfico e confessional para o território de uma pintura pessoal e, como tal, universal em seus propósitos. Ou ainda, uma pintura de um universo absolutamente particular desemboca na discussão mais ampla sobre sexualidade, poder etc. Pintura temática, insisto, mas em nenhum momento menos pintura. Ao contrário, é esta temática que leva à pulsão criadora, que fornece a energia libidinal que leva à voragem da forma, á erotização do gesto, à expansão quase orgástica da cor.
Fora da moda, mas dentro da melhor tradição da pintura universal. Diante desses novos quadros de Gianguido Bonfanti me vêm à memória nomes e obras que constituem o patrimônio da arte universal: El Greco, Rembrandt (o boi escorchado), Orozco (a figura prometeica do artista consumindo-se no próprio fogo criador), Kokoska (suas figuras descarnadas), Egon Shiele (auto-retrato masturbando-se), Francis Bacon, Frank Auerbach, Lucien Freud e Iberê Camargo. Em todos esses artistas como também em Gianguido Bonfanti, o tema central, quase único, tem sido sempre o homem – suas dúvidas, angústias, desejos, perversões. O homem que se desnuda para revelar e, uma vez mais, tentar decifrar o enigma da existência. A obra de todos esses artistas se funda em suas experiências de vida e, por isso o impulso criador que os levou a pintar de forma tão intensa não foi certamente o desejo de criar novas tendências ou modismos. Pois, como afirmou certa vez Iberê Camargo: “Os grandes artistas não queriam inovar. Queriam dar uma resposta à vida”.
(Frederico Morais. Em catálogo da exposição Bonfanti. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 1996).
1997-1999 - Ocres, terras, cinzas...
Esse é um período conturbado em sua vida: sua mãe, Bianca, definha lentamente devido à doença de Parkinson; por questões de trabalho, sua irmã, Renata, muda-se com o marido e os dois filhos para a Argentina; a mãe de sua mulher é acometida por uma doença grave e falece em poucos meses, janeiro de 1998.
Esses fatos provocam uma reviravolta familiar, levando Gianguido a se aproximar da família de sua mulher.
De novo, afetado pelo mundo e, em meio a uma crise pessoal, retoma seu processo de análise, desta vez com Sherrine Borges.
Com Mauro Nogueira, elabora o projeto arquitetônico da Anita Schwartz Galeria, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, inaugurando a galeria com uma individual: “Bonfanti”. Enquanto, o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro organiza outra mostra com telas e bicós-de-pena. Como resultado de sua reflexão sobre a teoria e a prática da pintura, Bonfanti escreve o texto do catálogo dessas mostras: “É no plano das sensações que a criação atinge sua plena potência, possibilitando, portanto, a obra de arte transcendente”.
A SUBLIME LIBERDADE DE SER MALDITO.
A arte como ética da expressão solitária
Longe do arrivismo do bonde das artes, Bonfanti faz uma pintura difícil, atemporal, com a dignidade de correr o risco ao ponto de permanecer incompreendido em seu próprio tempo. É o risco para quem a arte não é etiqueta de salão, mas ética da expressão solitária. A violência sexual dos seus quadros, além da destreza de sua técnica ainda serão, um dia, considerados contemporâneos. Até porque a desilusão do desejo tem o funesto dom de ser sempre atual. Artista maldito, Bonfanti pode jogar com a vantagem de usar a liberdade de expressar seu mundo à vontade, apenas concorrendo com a maldição de suas próprias imagens.
(Wilson Coutinho. Em O Globo, Segundo Caderno. Rio de Janeiro, 15.11.2000).
Incentivado pelo crítico Wilson Coutinho a participar em uma coletânea que reúne 100 auto-retratos de artistas brasileiros, Bonfanti inaugura uma nova etapa, produzindo uma série de auto-retratos em que inicialmente a influência de Frank Auerbach é visível.
O Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro organiza mostra individual, incluindo, além das telas em grandes formatos, a série de auto-retratos, as gravuras em metal e os desenhos a bico-de-pena.
2003-2005 - Ano do Brasil na França
O ano de 2003 começa com duas importantes críticas sobre a exposição do ano anterior: Wilson Coutinho escreve para o jornal O Globo, no dia 10 de janeiro de 2003: “Na contracorrente da arte atual”.
Daniel Piza, escreve para a revista Bravo, editada em São Paulo: “A exceção neofigurativa”.
Em setembro desse ano, Bonfanti toma conhecimento, através de uma aluna, Christéle Guerard, do Ano do Brasil na França.
A partir do interesse de Bonfanti pelo evento, Christéle se prontifica a levar seu livro para a apreciação de Jean-Paul Lefevre, adido cultural da França no Rio de Janeiro. Inicia-se, então, um processo que se desdobra na exposição individual na Galerie Le Troisième Œil, em Paris, em setembro de 2005 e na edição deste livro.
Em 2004, o Museu de Arte Metropolitano de Curitiba (PR) organiza uma mostra individual com 30 trabalhos: “Gianguido Bonfanti”.
Ilustra, o livro Caligrafias, de Adriana Lisboa (Rio de Janeiro: Editora Rocco) e a capa de Extremos da alma, de Marisa Schargel Maia (Rio de Janeiro: Editora Garamond).
Em 2005, Bonfanti dá continuidade à atividade de ensino na EAV e dedica-se ao projeto deste livro e da exposição em Paris.
Bonfanti é um grande artista e sua ética, fora do comum: não abre mão de sua verdade para agradar a ninguém. Muito menos para a brigada da cavalaria ligeira, formada por alguns curadores. Ele sabe que no famoso poema do poeta oficial vitoriano Alfred Tennyson (1809-1892) a brigada britânica ganha a batalha. Na realidade, ela perdeu.
(Wilson Coutinho. Em O Globo, Segundo Caderno. Rio de Janeiro, 10.01.2003).
Bonfanti tem influências de Iberê Camargo e da pintura inglesa das últimas décadas, como a de Frank Auerbach. Mas constrói uma linguagem inteiramente sua, muito forte, especialmente nas telas banhadas de ocre em que o violeta surge queimando aqui e ali. É o que se faz de melhor em pintura figurativa no Brasil atual.
(Daniel Piza. Em O Estado de S. Paulo, Caderno 2/Cultura. São Paulo, 13.07.2003).
Intenso e de especial importância para sua carreira. Bonfanti dá continuidade à atividade de ensino na EAV – Parque Lage, mas se dedica, sobretudo, ao projeto do livro Bonfanti, editado na Suíça e impresso na França pela Acatos Publishing, sendo distribuído pela Flammarion. Livro trilíngue (390 páginas), com cerca de trezentas reproduções, conta com dois artigos: “A vocação profética da pintura”, assinado pelo crítico francês Michael Francis Gibson, e “A densidade da beleza”, escrito pelo articulista e crítico de arte brasileiro Daniel Piza. Este livro é um marco fundamental, já que, associado à exposição individual “Bonfanti, peintures et dessins”, na Galerie le Troisième Oeil, em Paris, em setembro de 2005, dá início ao trabalho com a marchande francesa Annie-Marie Marquette, expandindo sua obra à Europa. Por ocasião da exposição, alguns artigos críticos foram escritos. Em “Bonfanti l’humanite à vif” (La Gazette de l’Hôtel Drouot, no 33-30. Paris, septembre 2005), Lydia Harambourg escreve: “A pintura de Bonfanti nos confronta com nós mesmos. É preciso também não esquecer que ela destila um saber encarnado, qualidade inerente a todo grande pintor”.
O livro Bonfanti foi lançado no Rio de Janeiro em novembro deste mesmo ano e sobre ele Gilberto Chateaubriand carinhosamente comentou: “este livro é a coroação de Napoleão – com a presença do Papa”. Bonfanti contou com matérias significativas dos meios de comunicação: Daniel Piza (O Estado de S. Paulo), Rosa Maria Corrêa (Revista Atelier, Rio de Janeiro), Eduardo Fradkin (O Globo, Rio de Janeiro), Cleusa Maria (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro).
Em 2006, sua mãe, Bianca Bonfanti, encerra quase uma década de sofrimento, vindo a falecer em junho. Ainda em luto, Bonfanti inaugura a exposição “Bonfanti, peintures et dessins”, na Galerie Le Troisième Œil, Bordeaux (França), onde também é acolhido com entusiasmo. Em resenha sobre o livro, Ali Gauthey em PhArts, (outubro-novembro/2006), revista de arte publicada na Suíça, escreve: “Desenhista sem igual, gravador surpreendente (águas-fortes), pintor de envergadura... e uma das figuras principais da pintura contemporânea, e este livro admiravelmente feito, ao menor detalhe, dá seu testemunho”.
Anos mais tranquilos de continuidade e aprofundamento de linguagem em que se centra no trabalho de ateliê. Ao colocar em diálogo pintura, desenho e gravura, dá sequência às cenas do purgatório, ampliando a escala dos autorretratos, alguns realizados em grandes formatos. Também em 2007 é convidado pelo escritor Lêdo Ivo para fazer seu retrato para o livro Réquiem, lançado pela editora Contra Capa em 2008.